Na época que cobre esta crónica havia gente que trabalhava, e, podem crer, muito mais do que se trabalha hoje. Só que os operários, lavradores, serralheiros, advogados, artífices, técnicos, militares, donas de casa, professores etc., todos eles se identificavam perante a sociedade como profissionais disto ou daquilo e não genericamente como trabalhadores. A designação “trabalhadores” e “classe trabalhadora”, tem uma génese muito mais política do que laboral. O conceito de trabalhador surge mais do Manifesto Comunista de 1848 do que da Revolução Industrial.
Era em torno dessa questão, que a tertúlia reunida naquela noite de 1955 na farmácia Soares, ali no Largo do Pelourinho, centrava o debate de forma mais ou menos consensual. Eram todos homens de meia-idade, com algum estatuto social no meio e politicamente moderados, ou mesmo de direita. Àquela mesma hora, frequentadores habituais do Café Leitão ali próximo, sentados a uma das mesas habituais, discutia de forma mais acalorada, na prática a mesma questão da tertúlia da Farmácia.
O que originara a simultaneidade na escolha do tema em debate, em lugares distintos e entre pessoas politicamente tão antagónicas? - Uma Lei do Estado Novo acabada de sair, que instituídas formalmente as «Corporações», as quais iriam ter, como órgão de cúpula um ministério próprio, o das Corporações. Em causa, afinal estava uma questão simples mas de grande importância e repercussões: a gestão e controle do mundo do trabalho. Quem o iria fazer em Portugal? O Governo através das suas «corporações» ou o movimento subterrâneo comunista e a sua extensão natural no aparelho sindical?
Para a esquerda reunida no Café Leitão, os mais ligados ao Partido Comunista (na clandestinidade), entendiam que o diploma governamental, vinha em sentido oposto à direcção dos “ventos da história”. Era imperiosa a “unicidade” na acção (uma palavra que voltaria à actualidade política em 1975), das pessoas que trabalhavam em todas e quaisquer artes e ofícios, em torno de uma única personalidade político-laboral: “o Trabalhador”. Esse “trabalhador” seria o precursor do futuro “homem-novo”, agora com consciência de classe, e pronto para a “luta de classes” contra os seus inimigos naturais - a burguesia, os contra-revolucionários, os capitalistas, os fascistas e outros maus da fita, que havia que “esmagar”, para que a Revolução Internacional Proletária triunfasse, na sua rota para a idílica “sociedade sem classe” (... e no seu estágio final, até sem necessidade de moeda): o Comunismo.
A exortação dos marxistas do Café Leitão terminava aqui. Sem poderes de premonição, não poderiam prever o rumo da História e perceber o verdadeiro significado de palavras ainda desconhecidas, como “kulaks”, genocídios e deportações, que marcariam o período histórico do estalinismo até à queda de um simbólico muro em Berlim. Afirmavam sim, que aquela medida do Governo tinha uma incontornável conotação fascista, o que até era verdade, ainda que, acrescento eu, em versão soft e aportuguesada. O corporativismo foi um sistema político originário da Itália Fascista, no qual o poder legislativo é atribuído a corporações de ofícios, representativas de todos os interesses económicos envolvidos na produção, através das quais os cidadãos trabalhadores, devidamente enquadrados e representados, participavam na vida política.
Com isto pretendia-se criar uma “terceira via” no mundo laboral e eliminar a “luta de classes” marxista, juntando no mesmo organismo económico-laboral - patrões, operários e o Estado -, o qual, como entidade neutral, serviria de árbitro e mediador dos conflitos emergentes, maximizando o crescimento económico e a atenuação da conflitualidade entre o mundo do capital e o do trabalho. Era esta a visão partilhada na tertúlia da Farmácia, sintetizada numa das afirmações ali ouvidas: para um país como o nosso, antes «corporações» ainda que políticas, do que «sindicatos» inevitavelmente politizados.
Concordância entre os campos opostos, só se verificava mesmo no regozijo comum, pela prestação que o Sporting local tivera essa época, que terminara agora em 1956, na disputa do Campeonato de Futebol da Primeira Divisão: um honroso 5.º lugar.
(PL955I)
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