Ao findar esse dia de 1975 o Pelourinho viu o senhor Gonçalves passar, no seu caminhar tranquilo e aprumado que lhe ficara de uma longa carreira militar de que entretanto se aposentara. Era fácil saber para onde se dirigia. Frequentador diário do Ginásio (Clube da Covilhã) de que era um dos sócio mais antigos, ia para lá, como ele costumava dizer, “dar uma vista de olhos pelas «gordas» dos jornais» na confortável sala de leitura do clube.
O Ginásio já não era o mesmo onde ele entrara pela primeira vez nos anos 30, mas ainda era um sítio relativamente agradável embora agora transpusessem a sua elegante porta circular, um género de pessoas que não se sentiriam bem lá, apenas alguns anos atrás. O antigo serviço de bufete volante para os sócios frequentadores, cedera o lugar a um bar vulgar no piso superior, local algo barulhento onde muitos dos tais que não se assomariam por ali antes, bebiam, falavam alto e enfim... tinham o comportamento natural da nova classe social então emergente – a dos trabalhadores-proletários, politizados à pressa e mentalizados no “...isto agora é tudo nosso. O Fascismo acabou!”, porque entretanto ocorrera um “puch” militar (ou uma revolução, conforme o critério) e os tempos, as mentalidades e as pessoas – já eram outros.
Tempos houvera em que os sócios do Ginásio, que ali iam para jogar as cartas ou utilizar um das quatro bem cuidadas mesas de uma luxuosa sala bilhar clássica, com candeeiros a incidir somente em cima dos panos verdes das mesas, contavam com um serviço de bufete que era levado até ao sócio através do empregado Silva (um ancião quando o conheci), que por sua vez tinha um supervisor: um também idoso mordomo, sempre de fato escuro e ar grave, tipo inglês, a que os sócios tratavam com certa deferência por Senhor Beja.
O Ginásio era o mais importante clube social da classe média da cidade; a classe “alta”, endinheirada ou simplesmente snobe, reunia-se no Clube União. Não é que as inscrições para sócios de qualquer destes clubes impusessem qualquer tipo de descriminação social, mas ela acontecia naturalmente: cada um procurava entrar para o clube onde estavam as pessoas do seu meio, do seu círculo de amigos, e encontrarem um ambiente agradável onde se sentisse confortavelmente. Por isso, frequentavam o Ginásio, empregados (recorde-se que então havia nas empresas e na própria legislação laboral, distinção formal entre empregados e operários), quadros das empresas, comerciantes, funcionários etc. Gente de trabalho mas com um certo nível comportamental.
Mas, logo que entrou na sala de leitura, alguém lhe chamou a atenção para um determinado assunto que os jornais publicavam. E ele, nesse dia 16 de Maio de 1975, ficou mais tempo a ler os jornais do que costumava fazer, quando simplesmente passava os olhos pelas «gordas”...
A edição do Público debruçava-se sobre incidentes relacionados com o chamado PREC (Programa Revolucionário em Curso), que começara logo após o golpe militar de Abril 74. A propósito transcrevia o testemunho que, em Maio de 1975, o jornalista Carlos Coutinho fizera chegar ao Tribunal do Barreiro, onde estava a ser julgado um militante da organização armada do Partido Comunista, a ARA (Acção Revolucionária Armada). Carlos Coutinho depôs a favor de Fernando dos Santos Gonçalves acusado de, em 1965, ter desviado 13 mil contos (65 mil euros) da delegação bancária onde desempenhara as funções de subgerente: "Esse dinheiro saiu de mãos onde não devia estar e foi para mãos onde devia estar. (...) Choca-me ver sentado no banco dos réus um revolucionário; um revolucionário, depois do 25 de Abril, deve julgar e não ser julgado", concluía Carlos Coutinho.
Citações de Lenine, Brecht e Cunhal fundamentaram a tese da defesa de que "um revolucionário, depois do 25 de Abril, deve julgar e não ser julgado". O juiz deu como provados os factos, mas considerou-os amnistiados. Em seguida, pediu desculpa ao réu que estivera um mês na prisão a aguardar julgamento. "Em nome do tribunal, quero dizer-lhe que lamento profundamente este mês de prisão que passou." E por fim abraçou-o. Em perfeita sintonia com as teses da superioridade moral do antifascismo,
Sobre o mesmo assunto, O Século de 16 de Maio de 1975 compôs o seguinte título: "Militante anti-fascista finalmente amnistiado" e desenvolveu uma prosa exaltante, quase épica: "Julgador e julgado abraçaram-se, logo esse abraço se multiplicando pela assistência, que não prescindiu de saudar o seu companheiro, militante antifascista, ontem restituído à liberdade, e que o aguarda, novamente, nos bancos agora do povo, onde poderá utilizar o curso de economia política que tirou no exílio (...) para a construção de um Portugal democrático e socialista."
Era assim Portugal nesses tempos...
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010
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