quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

O Pataco ... é Falso !

Vidal era o velho guarda-livros da empresa. Imigrante galego (o seu primeiro nome era Ramon) terminou uma viagem de comboio em terceira classe, na Covilhã. Chegou ainda garoto, chamado por um parente. Ficou por cá toda a vida. Iniciou-se no comércio da época como aprendiz, depois foi marçano de loja; constituiu família, e um dia tentou subir na vida, estabelecendo-se com uma loja de fazendas brancas e retrosaria ali mesmo à Portas de S.Vicente. As coisas não lhe correram bem e um dia, passados anos, a loja de panos brancos do senhor Vidal vai à falência. Então ele, que já não era novo, agarrou imediatamente a oportunidade que surgiu de ocupar o cargo de guarda-livros numa fábrica de lanifícios que se estava a formar. Se, na altura já se falasse em currículo, o dele teria poucas palavras: honestidade, respeitabilidade e a experiência adquirida com as contas da loja.

A contabilidade naquele tempo, - “a escrita” - das empresas estava longe de se revestir da complexidade e exigências fiscais e legais dos dias de hoje e, durante o seu percurso no comércio ele deve ter adquirido as suas noções básicas, quem sabe se através do popular livro “O guarda-livros Sem Mestre”?
Escriturava uns livros enormes, que regressavam depois sempre ao cofre-forte da empresa. Usando aparos especiais para obter efeitos caligráficos, os guarda-livros desenhavam e lançavam, com uma caligrafia tão rebuscada como a dos antigos copistas da era pré-Guttemberg, os diferentes movimentos contabilísticos, enchendo enormes colunas com números que depois tinham que ser somados mentalmente, sem qualquer auxiliar para além da tabuada aprendida na escola. Para esse enormes livros havia nos escritórios uma grande mesa inclinada – tipo estirador – onde o guarda-livros escriturava as intermináveis colunas dos vários livros: Razão, Caixa, Diário, Balanços etc.

Quando conheci o senhor Vidal, ele, em rigor, já era assim uma espécie de guarda-livros honorário da fábrica, porque já lhe tinham dado outras funções fora do escritório. As escolas comerciais tinham começado a credenciar jovens com uma formação contabilística mais elaborada que rapidamente ocuparam o mundo do “Deve e Haver” tradicional, com as suas máquinas de contabilidade mecanográfica por decalque que escreviam sobre fichas e formulários, máquinas de calcular etc. Os guarda-livros já eram então “Contabilistas”.

Foi nessa fase que me relacionei com ele.
Se no guarda-livros Vidal alguma coisa diferia daquelas personagens descritas por Eça de Queiroz e outros escritores, que tinham à sua responsabilidade as contas dos casas fidalgas, função que desempenhavam com grande seriedade e prestígio, esta diferia só no sentido de o homem era ainda mais dedicado e submisso a quem lhe dera trabalho em fase difícil da sua vida – o agora chamado “patrão” e que no tempo de Eça se designava por Senhor, Fidalgo ou talvez Amo.

Toda a tecnologia que tornou descartável o saber e a arte do velho guarda-livros, não tardaria muitos anos a, por sua vez, ir para os sótãos e museus, com o aparecimento da electrónica e dos computadores. Julgo que o nosso amigo Vidal já não viveu o suficiente para ver a caminho da sucata, a parafernália de maquinetas que viera usurpar o lugar dos grandes e artísticos livros que tinham dado nome à sua profissão. Mas certamente se rebolaria de gozo.

A faceta “queirosiana” do homem era absolutamente ímpar. A sua relação com o homem que lhe dera emprego, em situação eventualmente difícil – o patrão, como dizia respeitosamente – era de uma submissão e fidelidade caninas. Sem que alguma vez tal lhe tenha sido ordenado, o Sr. Vidal, quando o patrão regressava de uma viagem, muitas vezes a altas horas da madrugada, esperava-o sentado nas escadas da sua residência, para, ao que dizia a justificar-se, este lhe transmitisse qualquer imaginária ordem urgente, a que faria dar seguimento na fábrica, na manhã seguinte. Ao que se dizia, e devia ser certo, a “ordem” que às três ou quatro da manhã, o patrão dava ao seu humilde servidor, era uma reprimenda: “- Oh, sr Vidal! Que disparate esse de estar aqui à minha espera a estas horas! O senhor deveria era estar na cama a descansar. Tenha juízo homem e deixe-se destas coisas !...” Não obstante, a fidelidade canina do Vidal sempre falava mais alto e provavelmente ao terminar a próxima viagem o empresário iria encontrar o pobre homem, dedicadamente, à sua espera.

Testemunha presencial de tempos que eu não vivi, eu incitava-o sempre que oportuno a desfolhar as suas recordações. E ele contava, contava...
Hoje recordo algumas dessas narrativas, da sua vida comercial, numa altura em que os marçanos e caixeiros, vestidos com o guarda-pó característico da profissão, ainda se dirigiam às clientes, invariavelmente com um Vossa Excelência...

Retive esta pequena história:
Certo dia na loja, enquanto o Sr., Vidal media “duas quartas” de pano de lençol a uma cliente, ao lado, o seu “caixeiro” atendia solicitamente uma outra, que se “aviava” com os “preparos” (elástico, nastro, linha de coser, chumaços e coisas assim ...) para um vestido que ia fazer. Tudo embrulhado cuidadosamente a cliente paga, colocando algumas moedas sobre o balcão. O caixeiro pega nas moedas e uma delas (de 1 pataco) chama-lhe a atenção...

Subserviente e com toda a delicadeza, tenta fazer notar a anomalia à cliente. Deste modo, conforme a narrativa do sr. Vidal:
- “Vossa Excelência, desculpará ...”
- “...mas há factos “factíveis” e casos muito susceptíveis de acontecer ..
- e como não quero melindrar Vossa Excelência ...-
(faz uma pausa, engole em seco e conclui de forma, agora surpreendentemente muito categórica):
- "Este Pataco de Vossa Excelência - é Falso !!!"
(PL956I)

Sem comentários:

Enviar um comentário