sábado, 27 de fevereiro de 2010

Divisões Panzer Chegam aos Pirinéus

A Emissora Nacional deu a notícia logo às primeiras horas daquele dia de Junho de 1940: «Paris tinha sido ocupada pelos Alemães!» No grupo de pessoas que habitualmente ia à loja do Romano comprar o jornal e aí ficava a comentar a actualidade, a opinião era unânime: - «os exércitos de Hitler estavam imparáveis, e a ocupação da restante Europa ocidental, mera questão de tempo e de estratégia político-militar». Alguém acrescentou a informação, ouvida na noite anterior na BBC, de que as poderosas Divisões Panzer estariam já concentradas nos Pirinéus aguardando instruções para executar a Operação Felix - a ocupação da Península Ibérica. Sentia-se medo no ar.

Em Lisboa, o Conselho de Ministros reunido em S. Bento, avaliava, preocupado a situação internacional: a França estava reduzida a um terço do seu território depois da instalação em Vichy de um governo francês colaborante com o invasor alemão e, em consequência do recente encontro de Hitler com Franco em Hendaya, na fronteira franco-espanhola, temia-se uma aproximação entre a Espanha e a Alemanha. A agressividade contra Portugal, da imprensa espanhola afecta à “Falange” de Franco, já não pressagiava nada de bom. Salazar e a diplomacia portuguesa, jogam com uma habilidade que teria por recompensa final, o mantimento do país fora do cenário da guerra, com o estatuto de país neutral e não beligerante. Ainda assim, saber-se-ia depois que, na pior das hipóteses, o Governo tinha um plano de contingência, pronto para ser executado e que passava, entre outras medidas, por se transferir para os Açores, se necessário.

Enquanto isso, os escaparates das livrarias exibiam o grande sucesso literário do momento: o livro de Arthur Koestler, “O Zero e o Infinito”: uma crítica contundente ao despotismo estalinista, que valeu ao autor a inimizade dos escritores Jean-Paul Sartre e Albert Camus.
Era também um livro que marcaria toda uma geração de comunistas – Partido ao qual o autor, um judeu húngaro que abandonara o seu país para escapar a um «pogrom» anti-semita - chegou a pertencer até 1938. Koestler, viveu então um longo e acidentado percurso, com uma participação na Guerra Civil espanhola e uma passagem pela Legião estrangeira (esta para evitar uma deportação para Leste), até encontrar refúgio em Inglaterra.

A frase-chave de “O Zero e o Infinito”, ficaria para sempre a pairar sobre a “realidade negra” do chamado socialismo científico: - “O Partido nunca se engana, camarada. Tu e eu podemos enganar-nos. Mas não o Partido. O Partido é alguma coisa mais do que tu e eu e que mil outros como tu e eu. O Partido é a incarnação da ideia revolucionária na História”. “O Zero e o Infinito”, é um desses livros que ultrapassam a sua época. Não é apenas um retrato de uma nação e seu sistema político, mas também, um “close-up” dramático sobre o estalinismo e os Processos de Moscovo.

Numa mesa à entrada no Café Central comentava-se elogiosamente a recente abertura da Exposição do Mundo Português na Praça do Império em Lisboa, que algumas pessoas do grupo já tinham visitado e por isso a recomendavam aos outros. Na altura, nenhum deles o poderia saber, mas ter-se-iam de esperar quase 70 anos para que um evento de dimensão semelhante, a Expo 98, tivesse lugar em Portugal.
(PL940)

As "Mentes Brilhantes" que os Lanifícios não Tiveram

Quando a indústria dos lanifícios começou a descaracterizar-se, a desligar-se do seu “ethos” próprio, e a caminhar rumo a uma autodestruição anunciada e selectiva, alguns sabiam isso conscientemente. Mas não acharam oportuno, denunciar qualquer existência individual de conflito de interesses, ... porque esse "status" lhes iria abrir o caminho rumo ao monopólio magnificente das suas empresas e à cartelização restrita que hoje se pode observar. 

Não seria também necessário ser demasiado optimista, para calcular que os "ignorantes de serviço" espalhados pelos vários centros de decisão e acompanhamento económico aos lanifícios, lhes viessem, sobremaneira pelo facto de terem alguma visão em terra de cegos, a oferecer, mais tarde ou mais cedo, as honrarias e "comendas" devidas pelos "relevantes" serviços empresariais prestados à comunidade. 

Para os milhares de trabalhadores têxteis que protagonizaram essa mudança nos tempos, o trabalho nas fábricas - agora geridas por monopólios e cartéis -,  passou a ser relativamente descartável. Foi a acção reflexa das políticas económico-industriais seguidas em meados do século XX, (erradas ou certas, consoante os interesses em causa...). Restou-lhes seguir o trajecto dos perdedores e, muitos deles, ainda não fazem ideia da teia de interesses que os desfavoreceu porque, dizem-lhes hoje, os verdadeiros culpados foi o Estado Novo, o condicionamento industrial, a falta de liberdades e de greves e, a sempre presente crise multi-funções.

A visão estratégica e o planeamento a longo prazo, realmente não estavam ao alcance dos então “Fabricantes” de Lanifícios e, por paradoxal que pareça, ainda menos à dos seus organismos de classe, onde pontuavam umas quantas “mentes brilhantes” ornadas com vistosos títulos académicos de universidades estrangeiras. Escreveu-se alguma coisa, falou-se muito e, sobretudo , teorizou-se, mas sempre na óptica tecnocrática dos adeptos das soluções feitas e prontas a servir, enfim, porque, lá fora... bla.bla,bla.

Não se ouviu então qualquer voz que encarasse a possibilidade de alavancar toda uma cultura têxtil da lã já existente (“know how”) nesta cidade-região, transmitida de pais a filhos, nem o reconhecimento da potencial vantagem competitiva que constituía esse “saber adquirido” tradicional. Às “mentes brilhantes” de então, foi necessário uns anos depois, vir um economista. Michael Porter,  explicar-lhes, devagarinho, as vantagens competitivas dos “clusters” locais nas economias modernas. Essa mesma realidade que já existia aqui quanto à lã, e apenas necessitada de ser valorizada, modernizada e gerida por forma sustentável.

Claro que muitas micro-empresas dos lanifícios iriam inevitavelmente perder a sua razão de existir pela inexorabilidade das dinâmicas dos mercados; mas, em paralelo, já existia aqui um enorme potencial para a criação de novas pequenas empresas, técnica e economicamente avançadas, assentes em novas tecnologias e saberes. Bastava que as “forças” que gravitavam em torno dos lanifícios, ajudassem o Estado a por em prática politicas de fomento da actividade industrial residente: mas as “políticas certas!”. - e não se limitasse a copiar modelos de catálogo macroeconómico desajustados da especificidade local dos Lanifícios.

Mal amados então pelos tecnocratas, nacionais e locais, que menorizavam quem não exibisse um título académico atrás do nome, foi então ostracizado todo um potencial para a criação de ninhos de novas pequenas empresas de lanifícios, assentes na experiência e competências de residentes com saber adquirido nos cursos têxteis da Escola Industrial Campos Mello, por onde estavam já estavam então a passar, na qualidade de professores-convidados, personalidades do mundo da ciência têxtil do gabarito de um Professor Galcerán Escobet, vindo directamente da Universidade de Tarrassa, e a quem, já depois de ter saído desta cidade-região, o governo espanhol distinguiu com um dos mais elevados graus académicos de Espanha. 

Alguns desse técnicos e artistas têxteis saídos da referida escola, sem as condições de capital e incentivos mínimas para tomarem o caminho do empreendedorismo nos lanifícios, eram posteriormente disputados pela grande indústria instalada em torno da lã, e aí retribuídos com remunerações tão elevadas – casos de José Maria Gabriel e Fernando Bidarra e dezenas de outros - que hoje teríamos de ir ao mundo do futebol profissional de alto nível, para encontrar aí valores monetários paralelos. 

Entretanto no caminho da competência e saber têxtil vinham já a perfilar-se atrás, com uma “dècalage” de poucos anos, novos técnicos e artistas têxteis formados nos estabelecimentos do ensino superior então aqui criados – primordialmente, como centros de saber e investigação da indústria têxtil da lã: primeiro o Instituto Politécnico e, na sua sequência natural, a Universidade da Beira Interior.. Nem assim. O "cluster" da lã acabou por não se concretizar por aqui. Para mal de muitos e bem de alguns..

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Quando os Juizes Abraçavam os Réus

Ao findar esse dia de 1975 o Pelourinho viu o senhor Gonçalves passar, no seu caminhar tranquilo e aprumado que lhe ficara de uma longa carreira militar de que entretanto se aposentara. Era fácil saber para onde se dirigia. Frequentador diário do Ginásio (Clube da Covilhã) de que era um dos sócio mais antigos, ia para lá, como ele costumava dizer, “dar uma vista de olhos pelas «gordas» dos jornais» na confortável sala de leitura do clube.

O Ginásio já não era o mesmo onde ele entrara pela primeira vez nos anos 30, mas ainda era um sítio relativamente agradável embora agora transpusessem a sua elegante porta circular, um género de pessoas que não se sentiriam bem lá, apenas alguns anos atrás. O antigo serviço de bufete volante para os sócios frequentadores, cedera o lugar a um bar vulgar no piso superior, local algo barulhento onde muitos dos tais que não se assomariam por ali antes, bebiam, falavam alto e enfim... tinham o comportamento natural da nova classe social então emergente – a dos trabalhadores-proletários, politizados à pressa e mentalizados no “...isto agora é tudo nosso. O Fascismo acabou!”, porque entretanto ocorrera um “puch” militar (ou uma revolução, conforme o critério) e os tempos, as mentalidades e as pessoas – já eram outros.

Tempos houvera em que os sócios do Ginásio, que ali iam para jogar as cartas ou utilizar um das quatro bem cuidadas mesas de uma luxuosa sala bilhar clássica, com candeeiros a incidir somente em cima dos panos verdes das mesas, contavam com um serviço de bufete que era levado até ao sócio através do empregado Silva (um ancião quando o conheci), que por sua vez tinha um supervisor: um também idoso mordomo, sempre de fato escuro e ar grave, tipo inglês, a que os sócios tratavam com certa deferência por Senhor Beja.

O Ginásio era o mais importante clube social da classe média da cidade; a classe “alta”, endinheirada ou simplesmente snobe, reunia-se no Clube União. Não é que as inscrições para sócios de qualquer destes clubes impusessem qualquer tipo de descriminação social, mas ela acontecia naturalmente: cada um procurava entrar para o clube onde estavam as pessoas do seu meio, do seu círculo de amigos, e encontrarem um ambiente agradável onde se sentisse confortavelmente. Por isso, frequentavam o Ginásio, empregados (recorde-se que então havia nas empresas e na própria legislação laboral, distinção formal entre empregados e operários), quadros das empresas, comerciantes, funcionários etc. Gente de trabalho mas com um certo nível comportamental.

Mas, logo que entrou na sala de leitura, alguém lhe chamou a atenção para um determinado assunto que os jornais publicavam. E ele, nesse dia 16 de Maio de 1975, ficou mais tempo a ler os jornais do que costumava fazer, quando simplesmente passava os olhos pelas «gordas”...

A edição do Público debruçava-se sobre incidentes relacionados com o chamado PREC (Programa Revolucionário em Curso), que começara logo após o golpe militar de Abril 74. A propósito transcrevia o testemunho que, em Maio de 1975, o jornalista Carlos Coutinho fizera chegar ao Tribunal do Barreiro, onde estava a ser julgado um militante da organização armada do Partido Comunista, a ARA (Acção Revolucionária Armada). Carlos Coutinho depôs a favor de Fernando dos Santos Gonçalves acusado de, em 1965, ter desviado 13 mil contos (65 mil euros) da delegação bancária onde desempenhara as funções de subgerente: "Esse dinheiro saiu de mãos onde não devia estar e foi para mãos onde devia estar. (...) Choca-me ver sentado no banco dos réus um revolucionário; um revolucionário, depois do 25 de Abril, deve julgar e não ser julgado", concluía Carlos Coutinho.

Citações de Lenine, Brecht e Cunhal fundamentaram a tese da defesa de que "um revolucionário, depois do 25 de Abril, deve julgar e não ser julgado". O juiz deu como provados os factos, mas considerou-os amnistiados. Em seguida, pediu desculpa ao réu que estivera um mês na prisão a aguardar julgamento. "Em nome do tribunal, quero dizer-lhe que lamento profundamente este mês de prisão que passou." E por fim abraçou-o. Em perfeita sintonia com as teses da superioridade moral do antifascismo,

Sobre o mesmo assunto, O Século de 16 de Maio de 1975 compôs o seguinte título: "Militante anti-fascista finalmente amnistiado" e desenvolveu uma prosa exaltante, quase épica: "Julgador e julgado abraçaram-se, logo esse abraço se multiplicando pela assistência, que não prescindiu de saudar o seu companheiro, militante antifascista, ontem restituído à liberdade, e que o aguarda, novamente, nos bancos agora do povo, onde poderá utilizar o curso de economia política que tirou no exílio (...) para a construção de um Portugal democrático e socialista."

Era assim Portugal nesses tempos...

Sapato Apertado, Não!

Por aqui na Cidade, durante a década de 50, verificaram-se alguns escassos vislumbres do que viria a ser a revolução sexual do pós-guerra nas décadas seguintes. Entre nós, essas coisas, sejam costumes, cultura ou ciência, vem normalmente tarde e de fora para dentro. Como dizia Eça de Queirós: importamos tudo a começar pelas ideias.

Havia e continuou a haver uma moral sexual pública, oficiosa e supostamente conforme com os bons costumes, muito formatada pelas doutrinas da Igreja Católica, que sempre entendeu que sexo e demónio eram sinónimos ou andavam por perto. Paralelamente coexistia uma outra moral privada, mais livre de dogmas, em que cada um fazia aquilo que em consciência achava melhor, e a própria sociedade enquanto tal, tolerava, desde que se mantivesse um mínimo de decência e recato.

Para o exterior, vinham somente os médios ou grandes desvios às normas morais instituídas, quando caíam no domínio público e se constituíam então em escândalos à escala local, quando protagonizados por figuras conhecidas, ou ainda pequenas histórias picarescas, apimentadas com algum sexo, que o “contaram-me” e o “ouvi dizer” ia propagando pela cidade.
Na altura ficou famosa e correu gerações, uma cantiga contendo uns versos brejeiros que envolviam sexualmente um comerciante, o Francisquinho da Padaria com uma outra pessoa. Os que ainda recordam a cantiga e os versos, sabem ao quem me refiro ...

Outra história picaresca teria ocorrido aqui nesses anos 50; quem conheceu a senhora em questão diz que ela negava a veracidade da história. Seja como for, a que circulou era assim: a senhora, à época, trabalhava na fábrica do industrial José V. – um ex-operário que conseguira ascender ao empresariado têxtil - de quem seria também amante, ... com a “tolerância” do marido, porque, enfim, a vida estava má e dali sempre entrava “algum” para a casa.

Num certo dia o nosso Zé V., parou o carro lá à porta a uma hora inusitada. Enquanto subia a escada, a senhora teria dito ao marido: - “Esconde-te que vem aí o senhor Zé!”; o referido não precisou que lhe repetissem a ordem e, como a casa era pequena e não havia outro sítio para se esconder (nas comédias de costumes costuma haver um roupeiro que salva a situação, mas neste caso não havia), meteu-se rapidamente debaixo da cama do casal.

O patrão Zé entra para o quarto e começa logo por dizer à operária, que estava com bastante pressa porque ia dali directamente para Lisboa. – “Passei só para perguntar se precisas que traga alguma coisa para ti?” - Ela responde que não. – “E o teu homem precisará de alguma coisa?" – Ela, hesita, pensa um pouco e diz: - “Só se fossem uns sapatos senhor Zé!...”. O outro pergunta: - “Que número é que ele calça?”. – “É.... (pensa um pouco), 39!”. O marido, debaixo da cama já se está a ver com uns sapatos apertados e não se contém: do seu esconderijo diz: - “Ó minha burra! Não é 39, é 40 !” ....
(PL951)

sábado, 13 de fevereiro de 2010

O Ser ou Não Ser dos Lanifícios

A indústria dos Lanifícios da Covilhã iniciou o seu caminho em direcção à extinção mais ou menos quando o Pelourinho – a designação tradicional do seu centro urbano – deu lugar à moderna Praça do Município; a primeira construção a assinalar essa nova realidade, foi o edifício dos CTT inaugurado no ano de 1950.

O momento económico na Covilhã era então era então de grande dinamismo empresarial. Nos anos 50 a economia libertara-se finalmente das restrições impostas pela II Guerra e vivia-se um surto de criatividade produtiva. Cristian Dior impusera a sua moda designada por “New Look” e isso também significava para a indústria têxtil, um aumento significativo da procura. O “New Look” vinha exigir que metros e metros de tecidos fossem utilizados para confeccionar um vestido segundo a moda. Mary Quant e as mini-saias, felizmente, para a economia têxtil ainda estavam distantes no tempo.

Entretanto tinham surgido no mercado as fibras têxteis artificiais e sintéticas, na forma de filamentos contínuos, ou cortadas a medida conveniente para poderem ser misturadas com as fibras naturais. Os artefactos provenientes destas misturas, perdiam naturalmente algumas das características dos têxteis naturais, mas também acrescentavam outras, particularmente importantes em determinado tipo de produtos têxteis: maior durabilidade e possibilidade de obter fios e tecidos mais finos, bom comportamento mecânico perante as máquinas. Para além disso havia também uma relação custos-benefícios mais favorável em relação aos “têxteis puros” (hoje dir-se-ia ecológicos).

Confrontada com o novo paradigma comercial e estratégico, para a indústria dos lanifícios local tinha chegado o momento de tomar importantes decisões para o seu futuro, quiçá para a sua própria sobrevivência. Ou se mantinha fiel à manufactura da lã e dos seus subprodutos, ou optava por uma solução híbrida, correndo o risco de se descaracterizar ao miscigenar-se progressivamente com as novas matérias primas têxteis. Como nos é próprio, a solução adoptada, depois de muita teorização, foi – nenhuma, deixar correr. Claro que daí e como resultado, começou a sair dos Lanifícios um produto têxtil incaracterístico facilmente produzível em outras partes do mundo.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Um País Ainda Sem "Trabalhadores"

Na época que cobre esta crónica havia gente que trabalhava, e, podem crer, muito mais do que se trabalha hoje. Só que os operários, lavradores, serralheiros, advogados, artífices, técnicos, militares, donas de casa, professores etc., todos eles se identificavam perante a sociedade como profissionais disto ou daquilo e não genericamente como trabalhadores. A designação “trabalhadores” e “classe trabalhadora”, tem uma génese muito mais política do que laboral. O conceito de trabalhador surge mais do Manifesto Comunista de 1848 do que da Revolução Industrial.

Era em torno dessa questão, que a tertúlia reunida naquela noite de 1955 na farmácia Soares, ali no Largo do Pelourinho, centrava o debate de forma mais ou menos consensual. Eram todos homens de meia-idade, com algum estatuto social no meio e politicamente moderados, ou mesmo de direita. Àquela mesma hora, frequentadores habituais do Café Leitão ali próximo, sentados a uma das mesas habituais, discutia de forma mais acalorada, na prática a mesma questão da tertúlia da Farmácia.

O que originara a simultaneidade na escolha do tema em debate, em lugares distintos e entre pessoas politicamente tão antagónicas? - Uma Lei do Estado Novo acabada de sair, que instituídas formalmente as «Corporações», as quais iriam ter, como órgão de cúpula um ministério próprio, o das Corporações. Em causa, afinal estava uma questão simples mas de grande importância e repercussões: a gestão e controle do mundo do trabalho. Quem o iria fazer em Portugal? O Governo através das suas «corporações» ou o movimento subterrâneo comunista e a sua extensão natural no aparelho sindical?

Para a esquerda reunida no Café Leitão, os mais ligados ao Partido Comunista (na clandestinidade), entendiam que o diploma governamental, vinha em sentido oposto à direcção dos “ventos da história”. Era imperiosa a “unicidade” na acção (uma palavra que voltaria à actualidade política em 1975), das pessoas que trabalhavam em todas e quaisquer artes e ofícios, em torno de uma única personalidade político-laboral: “o Trabalhador”. Esse “trabalhador” seria o precursor do futuro “homem-novo”, agora com consciência de classe, e pronto para a “luta de classes” contra os seus inimigos naturais - a burguesia, os contra-revolucionários, os capitalistas, os fascistas e outros maus da fita, que havia que “esmagar”, para que a Revolução Internacional Proletária triunfasse, na sua rota para a idílica “sociedade sem classe” (... e no seu estágio final, até sem necessidade de moeda): o Comunismo.

A exortação dos marxistas do Café Leitão terminava aqui. Sem poderes de premonição, não poderiam prever o rumo da História e perceber o verdadeiro significado de palavras ainda desconhecidas, como “kulaks”, genocídios e deportações, que marcariam o período histórico do estalinismo até à queda de um simbólico muro em Berlim. Afirmavam sim, que aquela medida do Governo tinha uma incontornável conotação fascista, o que até era verdade, ainda que, acrescento eu, em versão soft e aportuguesada. O corporativismo foi um sistema político originário da Itália Fascista, no qual o poder legislativo é atribuído a corporações de ofícios, representativas de todos os interesses económicos envolvidos na produção, através das quais os cidadãos trabalhadores, devidamente enquadrados e representados, participavam na vida política.

Com isto pretendia-se criar uma “terceira via” no mundo laboral e eliminar a “luta de classes” marxista, juntando no mesmo organismo económico-laboral - patrões, operários e o Estado -, o qual, como entidade neutral, serviria de árbitro e mediador dos conflitos emergentes, maximizando o crescimento económico e a atenuação da conflitualidade entre o mundo do capital e o do trabalho. Era esta a visão partilhada na tertúlia da Farmácia, sintetizada numa das afirmações ali ouvidas: para um país como o nosso, antes «corporações» ainda que políticas, do que «sindicatos» inevitavelmente politizados.
Concordância entre os campos opostos, só se verificava mesmo no regozijo comum, pela prestação que o Sporting local tivera essa época, que terminara agora em 1956, na disputa do Campeonato de Futebol da Primeira Divisão: um honroso 5.º lugar.
(PL955I)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Adagio para um Coronel Louco

Adagio para um Coronel Louco – I

O som da bofetada não chegou até aos duzentos militares que em formatura na Parada do quartel, estupefactos, a vimos aplicar ao nosso camarada de armas; mas todos, sem excepção, a sentimos como se tivesse sido aplicada na nossa própria cara.

O agredido, - um Cabo miliciano - rubro de surpresa e indignação, baixou-se para apanhar do chão o bivaque militar que lhe tinha caído da cabeça com a pancada, perfilou-se diante do agressor – um Major – disse-lhe qualquer coisa que não conseguimos ouvir, fez a continência militar da praxe e foi ocupar de novo o seu lugar no pelotão.

Tudo isto se passa debaixo do arco principal da Parada do então Batalhão de Caçadores 2, actualmente Universidade da Beira Interior (UBI). O Batalhão de Instrução estava em formatura no local, para cumprir uma formalidade burocrática do exército: “o sorteio”. Este era mais uma das tentativas de aperfeiçoamento do sistema do recrutamento militar, já iniciado no governo de Teófilo Braga em 1911, durante aquele executivo que teve uma longa vida para a época, 328 dias - quase um ano. Só o governo de Afonso Costa, 13 anos mais tarde conseguiria superar esta longevidade e manter-se em S. Bento durante 390 dias. A I República era assim ...

A “formatura” destinava-se a atribuir por sorteio aos recrutas em parada, um papel com um número. Esse número iria serviria, no caso de haver excedentes de militares numa incorporação, ou razões de ordem familiar consideradas imperiosas (terem filhos ou familiares a seu encargo directo, por exemplo), para mais tarde decidir, em igualdade de circunstâncias, quem “passaria à disponibilidade” (iria para casa), imediatamente no fim da escola de recrutas e de efectuado o juramento de bandeira.

Só mais tarde se conhecerem os pormenores por detrás do insólito acontecimento ocorrido sob o arco romano da Parada: em determinado momento, em plena formatura, o cabo miliciano notara que no ombro e muito próximo do pescoço do comandante do pelotão à sua frente, um Aspirante a oficial miliciano, tinha pousado um ameaçador abelhão que a qualquer momento, poderia espetar o seu doloroso ferrão; naturalmente apressara-se a sacudi-lo com a mão.

Lá da frente da formação, o Major observara o gesto e interpretara-o, erradamente, como uma brincadeira e uma quebra de disciplina. Manda um ordenança chamar o militar, supostamente transgressor, à sua presença. Uma vez aí, por razões (psicológicas) que se tentarão explicar adiante, e sem que tivesse ocorrido qualquer troca de palavras entre ambos, dá-lhe a já referida bofetada, sem aparentemente querer saber se o seu acto, feito na presença de “inferiores” (militares menos graduados na gíria militar) do cabo miliciano, para além de tudo o mais, também em si mesmo, constituía uma quebra grave da disciplina militar.

Com uma calma invulgar em alguém que acaba de ser publicamente humilhado e agredido, o Cabo miliciano levantou o bivaque do chão, colocou-o na cabeça, perfilou-se e, em conformidade com as normas militares vigentes, pediu ao seu superior (e agressor). permissão para apresentar uma queixa formal contra ele, ao que o outro, ainda nervoso, anuiu.

Militares de várias patentes, com a experiência dada por muitos anos passados na tropa, ao tomarem conhecimento do ocorrido, foram peremptórios: o Cabo miliciano não tinha a mínima chance de, com a sua queixa, vir a incomodar minimamente o Major e ainda menos, que daí resultasse qualquer punição. – “Vai ser levantado um auto” – diziam - “e aí, basta que o major declare em abstracto que o cabo o desrespeitou por palavras - por exemplo!...”. Continua ...
(PL958)

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Adagio para um Coronel Louco

Adagio para um Coronel Louco – II

Pelo regulamento de disciplina militar, um oficial superior possui “palavra de honra”, significando que, em caso conflito disciplinar, a sua palavra basta e não há oportunidade para contraditório; já o mesmo privilégio não era concedido aos militares de baixa patente, como era o caso.

Porém, contrariando todas as previsões a “queixa” do Cabo miliciano, seguiu o seu caminho e em consequência do “auto” produzido, o Major viu registado no seu currículo militar uma “advertência” e foi coercivamente transferido para outra unidade. Para entendermos este desfecho, vamos ter que conhecer os protagonistas. Vamos ter de situarmo-nos no tempo e no ambiente em torno dos acontecimentos. Comecemos por aqui.

Decorria o mês de Maio de 1958. Humberto Delgado tinha-se apresentado como candidato à Presidência da República. Percorria o país despertando enorme entusiasmo popular. Para trás ficara já o “obviamente demito-o”; as recepções apoteóticas no Porto e na estação de Santa Apolónia quando do seu regresso à capital iriam suceder-se noutros locais. O seu staff de campanha programara uma viagem eleitoral à Covilhã.

O Ministério da Guerra preocupado, dera antecipadamente ordens para a convocação de reservistas e a colocação dos quartéis em prevenção simples. Na tarde do dia em que a caravana do General Delgado ia passar na rua onde se encontra o edifício do então Batalhão, o Comandante deu tardiamente ordem para que fosse encerrada a Porta d’Armas do quartel. Tarde demais porque entretanto, dezenas de soldados – sobretudo entre os reservistas mobilizados – já atravessavam o portão e se colocavam na rua vitoriando a caravana de Delgado. É neste enquadramento temporal que decorre o incidente da bofetada.

Para o Major Castelo Branco de onde partiu a agressão, parecia estar guardado o papel de vilão. Não era bem assim. De pequena estatura, magro e ágil, era uma pessoa extremamente nervosa e impulsiva, mas, num ambiente militar em que nos patamares mais elevados, os maus são em maior número que os bons, ele decididamente não pertencia aos primeiros. Aquele seu acto de histeria nervosa, resultou de um acumular de tensões dentro dele, induzidas pelo seu superior imediato (melhor dito – tirano imediato) que, por ironia, apenas ostentava nas platinas da farda mais um galão que os seus, de Major, mas que o aterrorizava psicologicamente, tal como a vários outros – o Comandante do Batalhão.

O comandante da Batalhão de Caçadores 2 era um tenente-coronel - Peraltinha de seu nome. Personalidade estranhíssima, de cariz marcadamente psicótico. Poucos o conheciam no Batalhão e praticamente ninguém na Covilhã. Um misantropo, solteiro, sem amigos conhecidos, vivia entre o seu gabinete no quartel, o automóvel oficial com motorista que o transportava de um lado para o outro, e um pequeno quarto na Pensão Avenida junto ao Jardim Público, de onde nunca saía nem mesmo quando as festas da cidade decorriam ali mesmo à porta.

Ao que se dizia, passeava para trás e para a frente no seu quarto da Pensão até altas horas da madrugada, como um animal enjaulado. Mantinha com os seus subordinados mais imediatos um relacionamento a rondar o surrealista. Mais do que uma vez foram vistos no seu gabinete, perfilados como soldados rasos, o próprio segundo comandante que era um Major e também o Major Castelo Branco que então comandava a escola de recrutas. A sua agressividade ameaçadora e o desprezo para com aqueles que obrigava a permanecer de pé e humildemente perfilados na frente da sua mesa, eram conhecidos por toda a Unidade Militar. Se alguém duvidasse da sanidade da mente daquele homem, o seu fim trágico, poucos anos depois, viria a confirmá-lo: suicidou-se com a própria arma. Continua ...

Histórias da Pequena Corrupção à Portuguesa

Um amigo, importador de produtos químicos para a indústria textil, pediu-me para o introduzir em algumas empresas de lanifícios junto das quais eu tinha contactos e conhecimentos. Nessa linha, um certo dia dos anos 80 estávamos ele e eu, perante o Mestre João - um homem simples e de rudimentar instrução - mas era quem fazia as compras naquela fiação de fio cardado.

As diversas matérias primas-têxteis, componentes do fio que vai ser produzido, começam por ser dispostas em camadas umas sobre as outras para assegurar uma boa mistura final, e pulverizadas camada a camada, com um lubrificante apropriado, - está a ver-se que o meu amigo importava um desses lubrificantes - que posteriormente facilitará o processo mecânico e reduzirá a indesejada quebra das fibras têxteis durante o processo; a mistura lotada, passa em seguida por uma pequena máquina de tambor rotativo, a partir da qual vai iniciar-se todo um processo que passará pela cardação e posterior fiação da matéria-prima.

A operação de cardação propriamente dita, é realizada por uma bateria de máquinas que accionam cilindros de vários diâmetros, todos eles revestidos com uma tela especial (muito cara) com finas puas de aço – dito “o puado” –, a quem compete desagregar as fibras têxteis da mistura e tanto quanto possível paralelizá-las, apresentando-as na sua fase final, já sob a forma de rolos de mechas devidamente calibradas e prontos para alimentarem as máquinas de fiação.

Para lubrificar as matérias-primas a cardar, Mestre João utilizava um produto tradicional - a “oleína” – uma substância orgânica e gorda proveniente de óleos vegetais. O meu amigo esforçou-se por convencê-lo a mudar para os novos “óleos sintéticos”, que tinha sobre a oleína vantagens e vantagens, ...um nunca mais acabar. Ao sairmos, o meu amigo vinha com uma encomenda de um tambor de 200 litros do seu fantástico “óleo sintético” que iria, dali em diante substituir o lubrificante ali usado.

Semanas mais tarde, Mestre João telefona-me aparentemente em pânico: – «Uma desgraça! Nem imagina!..» – «O lubrificante que F.. (o meu amigo) vendeu para aqui, estragou completamente o “puado” das cardas, que vai ter que ser substituído! – É um prejuízo enoooorme!!...»

Fiquei preocupado. Tinha a noção de quanto custava um revestimento do puado de cada “carda”. Telefonei a F.. alarmado: – «E agora!?». Para minha estranheza, o seu comentário foi calmo – «Ah! Já sei o que aconteceu! Desculpa, esqueci-me na altura!...» - A calma dele deixava-me completamente confuso. – «Tem paciência...» – diz-me ele – «Vai lá falar com o Mestre João e diz-lhe que esteja descansado porque “aquela parte” do costume, é para ele como já se sabe. É que só por esquecimento não lhe falei aí nisso. Quando passar de novo já lhe levo o dinheiro!.»

Fui, algo receoso do acolhimento que me esperava. Falei com o Mestre João, expliquei-lhe. Aceitou tudo sem problema de maior. Quando me preparava para sair, acompanhou-me à porta e disse: - «Olhe, para compensar o seu transtorno de ter que cá vir, diga a F que me pode mandar outro tambor do produto !...» - Céus, como aprendi! Afinal todo aquele problema, tinha uma solução simples: Luvas!. “Puado” a auto-regenerar-se assim tão instantaneamente, nem eu nem ninguém viu certamente mais.
(PL982I)

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Adagio para um Coronel Louco

Adagio para um Coronel Louco – III

Analistas de dentro do Batalhão viram na “queixa” do Cabo contra o Major, uma oportunidade que caiu ao colo do Comandante para se descartar do Major que odiava (afinal, ele odiava toda a gente ...).
... continuado
Deu luz verde à abertura de um Inquérito e, como relator nomeou um oficial que também não apreciava particularmente o Major. Sem a conivência do Comandante do Batalhão, o assunto não teria tido consequências...

O Cabo miliciano Mateus Ramos – esbofeteado -, era um homem inteligente com uma cultura acima da média, grande leitor de livros; recordo especialmente a sua admiração por Florbela Espanca (que gostava de ler em voz alta) e Pitigrili, um autor de sucesso na altura; gostava de atletismo e praticava-o sem intenções competitivas. Nesta modalidade, impressionava-me a quantidade de recordes desportivos que ele memorizava. Da sua boca ouvi pela primeira vez referência a um atleta do Sporting, chamado Manuel Faria – o primeiro vencedor português da corrida de S. Silvestre em S. Paulo Brasil - que, contava ele, andava a trabalhar nas obras do estádio do clube e, enquanto os atletas corriam no campo, ele com as suas botas de trolha, procurava acompanhá-los fazendo o percurso pelo exterior, até ao momento em que o Professor Moniz Pereira o chamou para treinar sob a sua orientação técnica.

O Aspirante a oficial e comandante do pelotão, a quem o inoportuno insecto se preparava para picar. também não era um vulgar militar. Chamava-se Filipe Rosário e viria a ser conhecido no mundo do teatro e da TV como o actor “Filipe Ferrer”. Figura ímpar em inúmeras peças de teatro e, ultimamente também como intérprete de telenovelas. Na altura e enquanto pessoa, era um daqueles raros seres a quem só se conhecem amigos, começando por colegas e subordinados no Batalhão de Caçadores 2, mas também na própria Cidade, onde acolhido com simpatia pela sua forma descontraída de estar na vida e ainda por ser o grande dinamizador da actividade teatral local então emergente.

Vários dos intérpretes desta ocorrência - verdadeira mostra do que era o ambiente humano dentro dos quartéis, três anos antes da eclosão das guerras independentistas em África – já não se encontra infelizmente entre nós. Refiro-os pelo seus autênticos nomes, como homenagem à sua memória e também como contributo para a História dos que nunca entram na História.
(PL958I)

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

O Sexo e Esta Cidade

A cidade da Covilhã também teve o seu bairro vermelho, onde as prostitutas, legalizadas e devidamente recenseadas pelas autoridades policiais e sanitárias, residiam e desenvolviam a sua "arte" e negócio.

Esta “arte” , viria a conhecer mais tarde, por parte de movimentos emancipatórios das trabalhadoras do sexo e de alguns sociólogos - só bem mais tarde, porque a rígida moral de então, não o permitia -, uma denominação menos estigmatizante socialmente do que a habitual designação de “putas”. Pretendeu-se, e bem, dar alguma dignidade e segurança a uma profissão que se diz ser a mais antiga do mundo, propondo inclusivamente classificar em sede fiscal estas profissionais, como “prestadoras de serviços afectivos”.

Entretanto, nesses anos 50 de que se ocupa esta crónica, a Rua da Estrela - o Bairro Vermelho local -, era para a gente do burgo: a “Rua das Putas” e ponto final. Já sem as ditas, metade da rua sobreviveu até ao presente, porque o camartelo municipal derrubou a outra metade.

Por esse tempo, “ia às putas” gente muito diversificada: homens em busca de sexo puro e duro, operários, soldados, pessoas solitárias, tímidas ou mais desfavorecidas quanto ao aspecto físico, incapazes por si mesmas, de estabelecer relacionamentos que possibilitassem uma relação sexual normal e, por isso, tinham de recorrer a sexo mercenário, e também gente anónima no geral.
Não eram tão raros assim, casos de homens conhecedores do meio, que, por conhecimento próprio ou por indicação de alguém, confiavam a algumas dessas mulheres mais experientes, a iniciação sexual dos seus jovens filhos.

Em razão do que se oferecia e se comprava por ali, estranhamente não eram conhecidos na cidade escândalos ou alterações da ordem pública de qualquer espécie naquele local. Este, era vigiado regularmente pela polícia para protecção, quer das prostitutas quer dos seus clientes ocasionais, impedindo o proxenetismo, essa praga incontrolável da prostituição de rua.

Evidentemente, cada pequeno bordel da Rua da Estrela tinha uma “madama” que geria o negócio às claras, e a quem podiam ser pedidas responsabilidades tal como a qualquer outro empresário de diversões. Por sua vez as “meninas” iam obrigatoriamente a inspecções sanitárias regulares, por razões de saúde pública e para prevenir a contaminação de doenças venéreas. Na realidade aquela actividade era um serviço público, e é necessário ser-se muito hipócrita ou ignorante, para o não entender como tal.

Em Setembro de 1996, um dos Decretos mais disparatado que a folha oficial alguma vez publicou, proibiu “de jure” a prostituição. As iluminadas cabeças ministeriais afinal não tinham aprendido nada com a História. A prostituição nunca acabou nem acaba. Apenas muda de forma quando necessário. Foi o que aconteceu em Portugal. Da relativa Ordem que se vivia adentro desses bordéis legalizados, passou-se para o vale-tudo dos engates de rua, para os estabelecimentos de restauração ou diversão apenas como camuflagem para locais de oferta e procura de sexo, para o total descontrole sanitário do sexo público, para o tráfico de mulheres, a marginalidade e inevitavelmente a proliferação de drogas de hoje. Formalmente e de acordo com o preâmbulo do decreto, tudo para “salvaguarda da moral pública”...
(PL950III)

Caçando Bruxas, Comunistas, Fumadores, etc

Há um certo e atávico instinto predador na nação americana. Durante os escassos dois séculos da sua existência sempre, com instinto de cruzada mas também obedecendo aos seus pulsões de predadores, caçaram alguma coisa, na sua óptica, supostamente maléfica para eles e portanto, também para o mundo, de quem sempre se reclamaram de constituir uma 5ª essência moral e ética. Índios, bruxas, esclavagistas, traficantes de álcool ou de drogas, assediadores ou abusadores sexuais, fumadores, terroristas, constituíram, conforme a psicose da época, o alvo das suas perseguições saneadores.

Nos princípio dos anos 50, perseguiam os comunistas que, segundo eles, se acoitavam dentro da América e da seu próprio aparelho do Estado. O rosto de mais essa “guerra justa” era um Senador do Estado de Wisconsin, chamado Joseph McCarthy e a sua actuação, conhecida por "Macartismo" ou "Caça às Bruxas" levou a que, durante esse período, todos aqueles que fossem meramente suspeitos de simpatia com o comunismo, tornarem-se objecto de investigações e invasão de privacidade. Pessoas da “média”, do cinema, do governo e do exército foram acusadas de espionagem a soldo da URSS. Muitas pessoas tiveram suas vidas destruídas pelos macartistas, inclusive algumas sendo levadas ao suicídio.

Nos cinemas passa nesse 1950, o filme de António Lopes Ribeiro, “Frei Luís de Sousa” baseado na obra de Almeida Garrett; Eugene Ionesco coloca em cena em Paris, “A Cantora Careca” dando assim início ao chamado teatro do absurdo. Também é publicado um livro, que continua a ser um “bestseller” editorial, mas, paralelamente alvo de contestação quanto à veracidade dos factos ali narrados. O livro, “O Diário De Anne Frank”, seria um texto de uma jovem alemã de origem judaica (1929-1945) que teria deixado um diário sobre a sua vida em Amesterdão onde vivia com a família, oculta num sótão, para escapar às perseguições que o ocupante nazi movia aos judeus. O diário estende-se de 1942 até Agosto de 1944 e só teria sido encontrado depois de terminada a II Guerra Mundial, ou a sua publicação tornar-se-ia importante nesse período. Anne acabou por perecer no campo de concentração de Bergen-Belsen, mas em regra é omitido esse dado, a sua morte, como a de milhares de outros prisioneiros ficou a dever-se a um assassino silencioso que proliferava nos campos – o tifo.

Uma arma de destruição maciça faz, esse ano, o seu aparecimento na cena mundial sem que isso tivesse dado origem a qualquer acto bélico contra a nação que a produzira, os Estados Unidos, pela voz do seu Presidente (Truman) anunciam ao mundo que passaram a produzir a bomba de hidrogénio. Ali ao lado, estava um organismo internacional chamado ONU ...
(PL950II)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Vê, Quanto Ele Quer...?

A senhora jovem e bem vestida ao meu lado no balcão do Banco fez deslizar o cheque até ao bancário que atendia ao balcão: - “É para levantar!” - Olhei de forma displicente para o cheque e logo, logo, e os meus olhos arregalaram-se. O cheque, de uma importância razoável... era meu! Tinha-o emitido, apenas uns dias antes. Eu não conhecia a senhora que o apresentava a pagamento e ela, obviamente, também não me conhecia.

Mentalmente comecei a inventariar os cheques que tinha passado e, pela importância, acabei por identificar a pessoa para quem o emitira. Logo se me tornou clara a situação: A senhora que se propunha levantar o cheque (ao portador), seria certamente alguém próximo da pessoa a quem eu realmente o entregara.
Tinha toda a lógica: a interposição de uma terceira pessoa como recebedora do valor, tornava mais remota a possibilidade de se vir a relacionar a minha pessoa – enquanto emitente do cheque – com o seu real destinatário, porque aquele valor ... era o resultado de um discreto pagamento de “luvas” a um técnico, responsável pelas compras de certos produtos químicos necessários à laboração da fábrica.

Corrupção – brada-se hoje por aí! Tecnicamente talvez, mas em termos práticos, não.
Neste mercado têxtil, toda a gente sabia da existência de uma regra: «quem queria vender alguma coisa, teria que pagar algo a alguém de quem iria depender a compra». Disso, em regra beneficiavam os «quadros intermédios» e técnicos, mas sempre recordarei as palavras daquele importante empresário – socialmente um autêntico senhor – que, perante a iminência de iniciarmos negócios me disse liminarmente:
- “Meu caro: Quero para mim as importâncias que vocês – como fornecedores – se preparam para meter no bolso do meu técnico e... meu empregado. E, se alguma vez me confrontar com o que acabo de dizer-lhe fora deste escritório, eu nego!”. O que resultou foi que se teve que repartir as luvas por ambos, patrão e empregado, porque, a não ser assim, já sabíamos que os nossos produtos entrados para a fábrica sem o “agreement” do técnico, iriam ter «todos os defeitos e mais alguns..».

Em circunstâncias (anteriores) numa empresa industrial de lanifícios, fora-me dado o encargo de negociação e decisão na compra de uma caldeira automática (gerador industrial de vapor), para substituir uma outra ainda alimentada a lenha. Seleccionei o fornecedor e tentei “espremer” ao máximo o preço, até que chegámos à entrevista final da qual sairia a decisão da compra.
O representante da empresa fornecedora, antes de me indicar a verba final a que tinha sido possível chegar, encarou-me de frente (estávamos sós), e perguntou-me: - “Quanto é que você quer para si no negócio?” – surpreendido, respondi – “Para mim? Nada! Eu ganho o meu ordenado; isto é o meu trabalho!” – sorriu, bateu-me no ombro e disse: - “Está bem. Se quer assim, negócio fechado. Mas olhe que quem está na sua posição... da fama nunca se livra!”

A forma de pagar luvas, variava um pouco. As empresas mais pequenas entregavam – ou propunham-se entregar, uma percentagem em dinheiro a quem podia (ou não) decidir comprar-lhes. As grandes multinacionais também o faziam. E fazem. Utilizavam e utilizam métodos mais sofisticados: oferta de viagens e estadias no estrangeiro a pretexto de inexistentes congressos, visitas às instalações da empresa a pretexto da apresentação de pseudo-novos produtos, etc.; também havia “brindes” mais ou menos valiosos. Tão valiosos..., que podiam até materializar-se na oferta das chaves de um automóvel ou nas de um novo apartamento.
Por vezes rebentava um efémero escândalo, como o daquela técnica de tinturaria, a quem uma multinacional, fez oferta de um apartamento a estrear, e a senhora, num assomo de ética profissional, deu conhecimento do facto à direcção da empresa.
A multinacional ainda hoje cá está, integrada num outro grupo capitalista, a senhora acabou por sair da empresa algum tempo depois, e a empresa têxtil extinguiu-se juntamente com dezenas de outras, numa crise anunciada do sector que acabou por acontecer, e estas luvas, que, como diria Carlos Drumond de Andrade, fazem parte integrante do enredo, continuarão a “usar-se” enquanto houver mercado.
(PL985I)

O Pataco ... é Falso !

Vidal era o velho guarda-livros da empresa. Imigrante galego (o seu primeiro nome era Ramon) terminou uma viagem de comboio em terceira classe, na Covilhã. Chegou ainda garoto, chamado por um parente. Ficou por cá toda a vida. Iniciou-se no comércio da época como aprendiz, depois foi marçano de loja; constituiu família, e um dia tentou subir na vida, estabelecendo-se com uma loja de fazendas brancas e retrosaria ali mesmo à Portas de S.Vicente. As coisas não lhe correram bem e um dia, passados anos, a loja de panos brancos do senhor Vidal vai à falência. Então ele, que já não era novo, agarrou imediatamente a oportunidade que surgiu de ocupar o cargo de guarda-livros numa fábrica de lanifícios que se estava a formar. Se, na altura já se falasse em currículo, o dele teria poucas palavras: honestidade, respeitabilidade e a experiência adquirida com as contas da loja.

A contabilidade naquele tempo, - “a escrita” - das empresas estava longe de se revestir da complexidade e exigências fiscais e legais dos dias de hoje e, durante o seu percurso no comércio ele deve ter adquirido as suas noções básicas, quem sabe se através do popular livro “O guarda-livros Sem Mestre”?
Escriturava uns livros enormes, que regressavam depois sempre ao cofre-forte da empresa. Usando aparos especiais para obter efeitos caligráficos, os guarda-livros desenhavam e lançavam, com uma caligrafia tão rebuscada como a dos antigos copistas da era pré-Guttemberg, os diferentes movimentos contabilísticos, enchendo enormes colunas com números que depois tinham que ser somados mentalmente, sem qualquer auxiliar para além da tabuada aprendida na escola. Para esse enormes livros havia nos escritórios uma grande mesa inclinada – tipo estirador – onde o guarda-livros escriturava as intermináveis colunas dos vários livros: Razão, Caixa, Diário, Balanços etc.

Quando conheci o senhor Vidal, ele, em rigor, já era assim uma espécie de guarda-livros honorário da fábrica, porque já lhe tinham dado outras funções fora do escritório. As escolas comerciais tinham começado a credenciar jovens com uma formação contabilística mais elaborada que rapidamente ocuparam o mundo do “Deve e Haver” tradicional, com as suas máquinas de contabilidade mecanográfica por decalque que escreviam sobre fichas e formulários, máquinas de calcular etc. Os guarda-livros já eram então “Contabilistas”.

Foi nessa fase que me relacionei com ele.
Se no guarda-livros Vidal alguma coisa diferia daquelas personagens descritas por Eça de Queiroz e outros escritores, que tinham à sua responsabilidade as contas dos casas fidalgas, função que desempenhavam com grande seriedade e prestígio, esta diferia só no sentido de o homem era ainda mais dedicado e submisso a quem lhe dera trabalho em fase difícil da sua vida – o agora chamado “patrão” e que no tempo de Eça se designava por Senhor, Fidalgo ou talvez Amo.

Toda a tecnologia que tornou descartável o saber e a arte do velho guarda-livros, não tardaria muitos anos a, por sua vez, ir para os sótãos e museus, com o aparecimento da electrónica e dos computadores. Julgo que o nosso amigo Vidal já não viveu o suficiente para ver a caminho da sucata, a parafernália de maquinetas que viera usurpar o lugar dos grandes e artísticos livros que tinham dado nome à sua profissão. Mas certamente se rebolaria de gozo.

A faceta “queirosiana” do homem era absolutamente ímpar. A sua relação com o homem que lhe dera emprego, em situação eventualmente difícil – o patrão, como dizia respeitosamente – era de uma submissão e fidelidade caninas. Sem que alguma vez tal lhe tenha sido ordenado, o Sr. Vidal, quando o patrão regressava de uma viagem, muitas vezes a altas horas da madrugada, esperava-o sentado nas escadas da sua residência, para, ao que dizia a justificar-se, este lhe transmitisse qualquer imaginária ordem urgente, a que faria dar seguimento na fábrica, na manhã seguinte. Ao que se dizia, e devia ser certo, a “ordem” que às três ou quatro da manhã, o patrão dava ao seu humilde servidor, era uma reprimenda: “- Oh, sr Vidal! Que disparate esse de estar aqui à minha espera a estas horas! O senhor deveria era estar na cama a descansar. Tenha juízo homem e deixe-se destas coisas !...” Não obstante, a fidelidade canina do Vidal sempre falava mais alto e provavelmente ao terminar a próxima viagem o empresário iria encontrar o pobre homem, dedicadamente, à sua espera.

Testemunha presencial de tempos que eu não vivi, eu incitava-o sempre que oportuno a desfolhar as suas recordações. E ele contava, contava...
Hoje recordo algumas dessas narrativas, da sua vida comercial, numa altura em que os marçanos e caixeiros, vestidos com o guarda-pó característico da profissão, ainda se dirigiam às clientes, invariavelmente com um Vossa Excelência...

Retive esta pequena história:
Certo dia na loja, enquanto o Sr., Vidal media “duas quartas” de pano de lençol a uma cliente, ao lado, o seu “caixeiro” atendia solicitamente uma outra, que se “aviava” com os “preparos” (elástico, nastro, linha de coser, chumaços e coisas assim ...) para um vestido que ia fazer. Tudo embrulhado cuidadosamente a cliente paga, colocando algumas moedas sobre o balcão. O caixeiro pega nas moedas e uma delas (de 1 pataco) chama-lhe a atenção...

Subserviente e com toda a delicadeza, tenta fazer notar a anomalia à cliente. Deste modo, conforme a narrativa do sr. Vidal:
- “Vossa Excelência, desculpará ...”
- “...mas há factos “factíveis” e casos muito susceptíveis de acontecer ..
- e como não quero melindrar Vossa Excelência ...-
(faz uma pausa, engole em seco e conclui de forma, agora surpreendentemente muito categórica):
- "Este Pataco de Vossa Excelência - é Falso !!!"
(PL956I)

Bem Vindo Mr. André Simony !

Da janela da Câmara, ainda no edifício dos antigos Paços Filipinos, o Dr. Carlos Coelho observava o numeroso grupo que abaixo, no Pelourinho rodeava um automóvel que era visto pela primeira vez na Covilhã – um Wolkswagen, que mais tarde receberia a alcunha de “carocha”. O carro alemão, que em breve encheria as estradas portuguesas a partir desse ano de 1950, não era bonito mas apresentava umas quantas novidades e inovações mais do que suficientes para despertar a curiosidade geral: o motor de 1100 cm3 encontrava-se na traseira e era arrefecido a ar, logo não tinha radiador da água. Vinha com a fama – mais tarde confirmada – de ser um veículo com a enorme resistência e durabilidade características da indústria automóvel alemã. A sua caixa de 4 velocidades Porche, tornar-se-ia famosa pela facilidade de manuseamento.

Se a curiosidade era geral, os comentários que suscitava já eram díspares: habituados aos automóveis com três volumes, criticavam-se as linhas, tipo ovo, do carro, outros a pequena bagageira situada à frente da viatura que ainda tinha que comportar a roda sobresselente e outros ainda a visão para trás do habitáculo: uma janela relativamente pequena e dividida a meio. Não obstante este carro viria a ser o maior êxito de vendas do sector automóvel em Portugal, superando o popular Citroën Legère (a famosa arrastadeira), o Peugeot 203 e o Renault 4 Joaninha que também eram relativamente populares. O Wolkswagen custava então 49 mil escudos. Não tardaria muito a ganhar o concurso público para equipar a Polícia de Viação e Trânsito que fiscalizava as estradas e outras entidades estatais.

Foi nesse ano também que envergou a camisola do Sporting Clube da Covilhã André Simony, o jogador mais famoso em Portugal que o clube contratou. Os “leões da serra” obteriam um notável 6.º lugar no Campeonato Nacional da 1ª Divisão.

Em entrevista ao Século, Salazar faz a afirmação de que a Rússia tinha começado a deitar fogo a África. A conferência de Bandung (1955) viria dar forças a esse movimento afro-asiático, suporte dos movimentos de libertação nacional que surgem com o claro apoio da URSS e a expectativa benevolente dos EUA, desde há muito interessados em reforçar posições no continente africano. De facto os ventos da independência semeados na Índia, na Indochina francesa e nos domínios holandeses do Índico, alastravam aos países do norte de África e começavam a agitar a África Negra criando um movimento internacional entre os países afro-asiáticos, designado por países “não alinhados” que reunira inicialmente no Ceilão e que viria a culminar com a Conferência de Bandung, em que estiveram 29 Estados representando 1.350 milhões de habitantes. Nessa conferência foram lançados os princípios políticos do "não alinhamento" (Terceiro Mundismo), ou seja, de uma postura diplomática e geopolítica de equidistância das superpotências, em muitos casos mais aparente do que real. Em todo o caso a frase de Salazar em 1950, fazia todo o sentido. A exigência de abertura de negociações para a integração do «Estado Português da Índia» na União Indiana não surgia por acaso. [PL951I]

Que Quer Ouvir?...


O tecelão Manuel Maria regressou a casa cerca das seis e meia, bem disposto. Lá na fábrica do Gíria havia bastante trabalho; tinha acabado de instalar no tear uma teia com um fio bom, que lhe ia permitir conseguir durante algumas semanas, fazer uma «féria» semanal razoável, ao apresentar ao empregado da fabricação no momento de «dar o ponto», um total de passagens elevado - desde que o tear não resolvesse avariar ou partir alguma peça,... «o diabo seja cego, surdo e mudo!!!»; como o pagamento era feito pelo total semanal das passagens de «lançadeira» sobre a «teia» e de acordo com a tabela do Grémio estabelecida para o «preço por passagem», poderia conseguir uns bons valores de remuneração semanal e aproveitar para fazer umas compras lá para casa, que vinha adiando ultimamente.

O Mestre lá da fábrica, até lhe tinha pedido para ele ver se, ali pela vizinhança haveria alguma «metedeira de fios» que trabalhasse em casa, para passar a «cerzir» também as peças de fazenda da Fábrica Gíria, para tentarem entregar dentro do prazo, as encomendas. Se as coisas lhe continuassem a correr bem e houvesse trabalho, tencionava, quando fosse «a semana do descanso», levar a mulher e o filho visitar o irmão dele que vivia em Lisboa e aí cumprir um desejo de todos: visitar a Feira Popular que fora ali inaugurada nesse ano de 1950.

O rádio da vizinha sintonizado com a Emissora Nacional, tocava alto como era costume; ela mantinha o som assim, porque gostava de cantarolar sobre as canções que conhecia enquanto ia fazendo as tarefas domésticas por toda a casa; a Estação transmitia então o seu programa diário preferido: “Que Quer Ouvir? - discos pedidos pelos senhores radiouvintes”. Para encanto da vizinha, o som que ia para o ar nesse dia, provinha das vozes gravadas de alguns cantores seus predilectos: Rui de Mascarenhas, Maria de Fátima Bravo, Tristão da Silva, Amália, Maria de Lurdes Resende e outros. Gostava menos, porque em língua estrangeira já  não podia cantarolar por cima das canções, do Dean Martin, Frank Sinatra ou Ella Fitzgerald que alguns ouvintes pediam. A vizinha do Manuel Maria tinha sido, sem o saber, uma espécie de precursora do karaoke.

Lá por fora tinha tido início a Guerra da Coreia depois de a Coreia do Norte, um país da zona de influência soviética, ter invadido a Coreia do Sul com um regime ligado aos países capitalistas do Ocidente. É o primeiro conflito da »Guerra Fria»  O Estados Unidos intervêm imediatamente ao lado dos sul-coreanos, inicialmente por conta própria e logo obtêm a cooperação da ONU que lhes confere um mandato a justificar a intervenção. Esta guerra acabou por se tornar um confronto directo em território coreano entre a República Popular da China e os Estados Unidos. Duraria até Julho de 1953, contabilizando então cerca de 3 milhões e meio de mortes. Tirando esse morticínio, no fim, voltar-se-ia ao ponto zero, continuando a existir as duas Coreias em torno do paralelo 38.º, então uma referência constante nos noticiários internacionais. (PL950I)