Quase toda a gente que passava ou parava na zona envolvente à Praça do Pelourinho, conhecia o Vicente. Era uma figura popular, embora não fosse propriamente e em rigor, um habitante da cidade. O “Vicente” era um corvo. Não se sabia muito bem quando, o animal aparecera por ali e fizera poiso num espaço algures na Rua Comendador Veiga, exactamente nas traseiras do mais importante clube desportivo da Cidade. Alguém, que simpatizara com o animal improvisara-lhe por ali um poleiro, junto do qual o bicho sempre encontrava água e algum alimento. Era a sua casa.
As pessoas foram-se habituando aos gritos estridentes do corvo e ele lá fazia a sua vida voando livremente sobre os céus da cidade. Isto durou anos. Um dia, há sempre um dia como diz a canção, o Vicente meteu-se numa encrenca. A natureza que o criou, esquecera-se de o instruir sobre a existência de uma instituição fundamental da sociedade, a que todos os seres, - incluindo os corvos -, têm de obedecer para conviverem com os humanos: respeitar a propriedade individual. Isto, independentemente do que sobre o assunto, dissesse e pensasse Proudhon ao escrever o livro “Que é a Propriedade?” que, naturalmente o Vicente não pudera ler, e poucos conheciam até a existência.
Quem não quis mesmo saber dessas teorias para coisa alguma foi o cidadão Manuel Paulo Rato Júnior, que sem mais aquelas, apresentou formalmente uma queixa na Polícia contra o Vicente, acusando-o de lhe ter roubado “uma escova do limpa pára-brisas” do seu automóvel. Ninguém na cidade, ao conhecer-se o facto, encontrou explicação para a razão de o Vicente se interessar pelas escovas de pára-brisas do senhor Rato Júnior. Mas a queixa estava feita e havia que tomar providências, até porque, segundo o chefe da Polícia, já havia outras queixas de actuações do Vicente, que demonstravam bem o seu total desprezo pela propriedade alheia. A condenação do corvo foi, tal como a dos atenienses – o ostracismo. Por decisão do referido chefe da polícia da cidade, o Vicente foi levado para longe. Foi conduzido até à nascente do Zêzere na Serra da Estrela. Não há notícias da forma como reagiu à sua condição de exilado ou, se ainda hoje, quem o saberá, faz voos solitários, naquela sua obsessão pela busca de escovas de limpa pára-brisas.
Enquanto o Vicente caminhava para o exílio, noutra zona do mundo – o Quénia -, então uma possessão de Inglaterra, aí sim, a violência era a sério. Tinha começado a insurreição dos Mau-Mau que se veio a saldar, quando da sua extinção. sete anos após, por 13 mil mortes, das quais cerca de 1600 tiveram origem em enforcamentos. Eram os primeiros ventos da violência que iria varrer a África. Nesse dia, o jornal “O Século” que começou a ser distribuído na cidade cerca das 16 horas, tinha como tema de capa a reunião em "Ciudad" Rodrigo de Salazar e Franco. Na orelha direita do cabeçalho do jornal que João Pereira da Rosa dirigia, estava uma data: 1952.
sexta-feira, 12 de março de 2010
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